Celac-UE: latino-americanos exigem que europeus aceitem posições diferentes sobre guerra na Ucrânia

Os líderes ou representantes dos 60 países que participam da terceira cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e União Europeia (UE), nesta segunda (17) e terça-feiras (18) em Bruxelas, “estão próximos” de concluir as negociações sobre uma declaração conjunta a ser publicada no final do encontro, segundo fontes diplomáticas brasileiras. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva desembarcou em Bruxelas na tarde de domingo e não tinha compromissos previstos na agenda.

Adriana Moysés, enviada especial da RFI a Bruxelas

A guerra na Ucrânia, um tema sensível para os europeus, será provavelmente mencionada no documento de encerramento da cúpula. Entretanto, os termos do texto são arduamente negociados pelas delegações latino-americanas, incluindo o Brasil, que exigem que os europeus levem em consideração o posicionamento de países da região que não condenaram até hoje a invasão russa, entre eles Venezuela e Nicarágua, por exemplo.

Os dirigentes venezuelano e nicaraguense não vieram para o encontro na sede da UE, mas são representados nas discussões. Outras ausências notadas são as do presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, e da dirigente do Peru, Dina Boluarte, impedida de deixar o país por uma medida do Congresso peruano. Na ausência de Obrador, o presidente Lula lidera naturalmente os interesses latino-americanos.

O Brasil votou a favor das resoluções da ONU que condenam Moscou por ter desrespeitado as regras do direito internacional ao invadir a Ucrânia, mas entende que as diferentes visões dos países da Celac devem ser respeitadas pelos europeus. Com o apoio do Brasil, os latino-americanos trabalham para que a declaração final dê ênfase aos esforços de busca de diálogo entre as partes para uma solução do conflito, sem isolar a Rússia.

Acordo Mercosul-UE

O acordo de livre comércio Mercosul-União Europeia não faz parte dos temas em discussão na cúpula, mas pesa sobre o encontro e será tratado nas reuniões bilaterais do presidente Lula em Bruxelas.

A Espanha, atualmente na presidência rotativa do bloco, trabalha para a implementação do acordo. Quando o presidente Lula hesitou em fazer a viagem, o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sanchez, telefonou ao brasileiro e disse que a presença dele na capital belga era fundamental.

O primeiro encontro oficial na agenda de Lula é uma reunião bilateral com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, na manhã de segunda-feira. Na ocasião, Lula irá reiterar que considera “inaceitável” que os europeus ameacem o Mercosul com sanções, caso Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai não cumpram exigências ambientais adicionais, relacionadas com o desmatamento e disposições do Acordo de Paris sobre o clima.

Em março, a Comissão Europeia apresentou as novas condições um uma carta (“side letter”) endereçada ao bloco sul-americano, qualificada de “colonialista” em Brasília. Em tom duro, o líder brasileiro dirá à Von Der Leyen, como tem feito nas últimas semanas, que não aceita “ameaças de parceiros estratégicos”.

No final da semana passada, o Brasil enviou aos vizinhos do Mercosul o esboço da resposta que elaborou para a Comissão. Agora, o governo aguarda os comentários e contribuições de Argentina, Paraguai e Uruguai para finalizar o texto e enviar ao Executivo europeu. De acordo com fontes envolvidas nas negociações, em agosto deve ser possível fazer uma reunião entre as partes.

O Brasil também quer modificar o acordo concluído em 2019, após 20 anos de negociações, introduzindo mecanismos de proteção às empresas brasileiras nas chamadas compras governamentais, de modo que a indústria e o setor de serviços não tenham seu desenvolvimento comprometido pela concorrência de grupos da Europa.

Transições econômica, ambiental e digital em foco

A última cúpula UE-Celac aconteceu em 2015. Desde então, a UE mergulhou em problemas internos, como a gestão da grave onda migratória de 2015-2016, o Brexit, a pandemia de coronavírus e, por fim, a guerra na Ucrânia, que gerou também uma forte crise energética no continente. Passados oito anos, o cenário geopolítico global mudou e o bloco europeu busca a reaproximação com uma região do mundo com a qual tem afinidade e uma relação histórica.

Os 27 precisam reduzir suas dependências, enquanto pelo lado da América Latina, a Europa pode ser um parceiro estratégico para a industrialização de matérias-primas, acrescentando valor às exportações e gerando empregos. Os principais países da região querem investimentos com transferência de tecnologia. A defesa do multilateralismo também os aproxima.

Essa reaproximação, no entanto, ainda encontra barreiras. A UE espera dar a essa relação uma estrutura permanente, mas a Celac não possui o nível de institucionalização do bloco europeu, e por isso a ideia ainda exigirá negociações. Uma proposta de consenso é que os encontros de líderes das duas comunidades passarão a acontecer a cada dois anos. 

Os debates na cúpula estão centrados em alguns dos principais desafios atuais, como mudança do clima; comércio e desenvolvimento sustentável; inclusão social; recuperação econômica pós-pandemia; transição energética e digital; migrações; reforma da arquitetura financeira internacional e luta contra o crime organizado. Serão abordadas diferentes iniciativas e projetos de cooperação.

Para seduzir os aliados, a UE oferece o “Global Gateway”, um plano de investimentos estimado em € 10 bilhões que pode financiar, entre outras necessidades, energias renováveis, hidrogênio verde e minerais críticos, essenciais para a transição energética. Entretanto, esse montante é considerado superestimado por alguns especialistas por incorporar recursos do setor privado, além de ser inferior ao que os organismos de fomento europeus dedicam ao continente africano.

O presidente Lula terá uma série de encontros bilaterais à margem da cúpula Celac-UE. Depois da reunião com Ursula von der Leyen, ele participará da abertura da mesa de negócios União Europeia – América Latina e Caribe, a convite da presidenta da Comissão Europeia. O evento reunirá líderes políticos, representantes de bancos de desenvolvimento (BID e europeus) e do setor privado, a fim de explorar oportunidades na região.

Antes da sessão de abertura da terceira Cúpula Celac-UE, marcada para 16h no horário local (11h em Brasília), o presidente brasileiro tem uma bilateral com a primeira-ministra de Barbados, Mia Mottley. Depois, Lula será recebido pelo Rei dos Belgas, Filipe, e pelo primeiro-ministro belga, Alexander de Croo, no Palácio Real de Bruxelas. Ele também conversará com a presidenta do Parlamento Europeu, Roberta Metsola.

À noite, o presidente e a primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, participam de uma recepção com apresentação musical e um jantar de gala oferecido pelos europeus aos líderes latino-americanos.

Crescem investimentos da UE no Brasil 

Apesar do hiato de oito anos sem encontros birregionais, o Brasil e a UE nunca romperam a troca comercial e diplomática nesse período. O bloco de 27 países é o segundo maior parceiro comercial do Brasil, atrás da China. Em 2022, a corrente de comércio alcançou US$ 95 bilhões, valor 27% superior ao registrado no mesmo período em 2021. O Brasil exportou US$ 51 bilhões à UE, um aumento de 39% em comparação com o período anterior, e importou US$ 44 bilhões (alta de 16%), o que resultou num superávit da ordem de US$ 7 bilhões.

O Brasil também se destaca como o maior destino do Investimento Estrangeiro Direto (IED) dos países da União Europeia na América Latina, com quase metade do estoque localizado na região (€ 353 bilhões). O México vem em segundo lugar. Os investimentos europeus no Brasil se concentram nos setores de manufatura, infraestrutura digital e serviços.

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